Do Metrópoles
Uma megaoperação deflagrada pela Polícia Civil nesta semana expôs esquema milionário de desmanche enraizado na capital federal há ao menos uma década. Em depoimento aos investigadores, empresários brasilienses confessaram que encomendavam peças de carros a criminosos de Campinas (SP). Os carros eram roubados e furtados no município paulista de acordo com a demanda dos clientes, especialmente no Setor H Norte, em Taguatinga. Ao Metrópoles, o Departamento de Trânsito (Detran) admitiu que a fiscalização às lojas de autopeças não era feita na capital do país.
A força-tarefa composta por 450 policiais civis e auditores da Secretaria da Fazenda resultou em 26 prisões temporárias e preventivas no Distrito Federal, em Goiás e em São Paulo. Batizada de Rota da Seda, a operação foi deflagrada na segunda-feira (30/09/2019). Pelo menos 20 lojas foram interditadas. Os criminosos detidos em São Paulo chegaram ao Departamento de Polícia Especializada (DPE) nessa terça (1º/10/2019), sob escolta da Polícia Federal.
Interceptações telefônicas revelaram que, quando um cliente ia na loja e pedia uma peça que não tinha, os comerciantes faziam conexão com os bandidos e pediam para roubar determinado produto. Também era comum ladrões de carro do DF percorrerem essas lojas no Setor H Norte em Taguatinga oferecendo pacotes com peças de veículos furtados. DELEGADO ERICK SALLUM
Confira conversas de WhatsApp que integram o inquérito policial. Nos diálogos, a negociação é feita com comerciantes do DF e fornecedores paulistas. Acesse.
Ainda de acordo com Sallum, lotado na Coordenação de Repressão aos Crimes Patrimoniais (Corpatri), carros populares eram os principais alvos, pois são mais comuns no mercado. “Os criminosos não escolhiam um perfil específico de vítima, agiam por oportunidade. A obtenção dos veículos também era feita por meio de golpes de financiamentos. Compravam carros em nome de laranjas e não pagam a dívida. Outros alugavam os automóveis com nomes falsos e desmanchavam nos galpões destinados para esse fim”, completou.
As contas dos investigados foram bloqueadas por ordem judicial. Eles também estão proibidos de vender carros e imóveis. Durante as buscas nas cidades de Campinas, Valinhos, Hortolândia, Indaiatuba, Brasília, Goiânia e Águas Lindas, os policiais encontraram 2 mil euros. R$ 90 mil em espécie, além de armas, coleção com 20 relógios importados, carros e jet ski.
De acordo com a Polícia Civil, os galpões localizados em Campinas cortavam, em média, quatro carros por dia. Os integrantes da organização criminosa tinham funções definidas. Um grupo era responsável por conseguir os veículos; outro por desmontá-los; e, após esse processo, as peças eram enviadas para Brasília, em caminhões.
Para burlar a fiscalização, os suspeitos usavam notas fiscais frias. Todos os números de identificação do chassi também eram suprimidos, impedindo que fosse possível identificar e vincular as peças transportadas a ocorrências de roubos e furtos em São Paulo (confira abaixo). A PCDF estima que a quadrilha teria enviado ao DF, nos últimos 10 anos, ao menos 2 mil carros cortados.
“Trata-se de verdadeira indústria de roubo e furto de carros e desmanches. Pelo menos seis caminhões diferentes eram usados no transporte das peças. Cada um comportava, em média, 10 veículos cortados. Eles chegavam a transcorrer o percurso DF-GO-SP até três vezes na semana, indicando, portanto, um volume inacreditável de carros roubados que eram inseridos no mercado de autopeças”, detalhou o delegado.
Durante a investigação, um caminhão foi apreendido. Nessa oportunidade, foi possível montar, como um quebra-cabeça, no pátio do Instituto de Criminalística, 10 carros completos (quatro portas, capô, tampa traseira, teto, para-choques, para-lamas, faróis, lanternas, espelhos e toda a parte de acabamento e mecânica). “Os criminosos chegavam a enviar as baterias dos carros e até mesmo os extintores de incêndio que vinham ainda carregados”, detalhou Salum.
Investigação
Os policiais se infiltraram no comércio de autopeças do Setor H Norte em Taguatinga e, passando-se por empresários, simularam compras de lotes de peças – chamados de “pacotes” ou “kit lata”. A partir daí, conseguiram descobrir todo o esquema e chegar até os núcleos da quadrilha em SP e GO.
Segundo a PCDF, ficou comprovado que pelo menos 95% das lojas do DF estão fora da legislação vigente, que exige uma série de condicionantes para autorização de funcionamento. Os policiais constataram que, direta ou indiretamente, a grande massa de estabelecimentos da capital federal está vendendo peças de carros roubados e furtados não só no DF, como também em outros estados. A corporação ressalta que as investigações avançam para desvendar outras rotas ilegais de transporte de peças e prisão de mais lojistas que também se encontram envolvidos.
Todos os indiciados irão responder por organização criminosa, roubo qualificado, receptação qualificada, lavagem de dinheiro, uso de documento falso e fraude tributária. As lojas dos criminosos foram interditadas e todos os estoques de peças sem procedência serão apreendidas para futuro perdimento. As penas máximas somadas podem ultrapassar os 30 anos de prisão.
Fiscalização
O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) vai fiscalizar, nos próximos dias, lojas de autopeças usadas em Brasília para saber se esses estabelecimentos estão em compasso com a legislação vigente. A ação será realizada em parceria com o Detran-DF.
Em nota enviada à reportagem, o Departamento de Trânsito ressaltou que a atual gestão está levantando os procedimentos legais para regulamentar a fiscalização nos termos da Lei nº12.977 de 2014. “Por outro lado, o Detran-DF tem atuado em ações conjuntas com a Polícia Civil”, ponderou. O órgão admitiu que antes da deflagração da operação as vistorias não eram feitas.
Segundo o promotor de Justiça Cláudio Portela, há pelo menos 200 lojas de autopeças usadas e que devem ser alvo de fiscalização no DF. “Vamos buscar uma parceria com o Detran para que façam a fiscalização que a lei determina, porque com certeza há mais lojas envolvidas nesse esquema”, disse ao Metrópoles.
Conforme explicou Portela, empresas de peças usadas precisam estar cadastradas no Departamento de Trânsito. No entanto, muitas delas não estão atuando dentro da lei. “Com essa operação, a polícia recebeu uma lista de empresas cadastradas no Detran e nenhuma delas [lojas envolvidas no esquema criminoso] está na lista.”
“Há duas leis que tratam dessa questão: uma Federal (Lei n° 12977/2014) e uma distrital (Lei n° 5988/2017). Existe um cadastro nacional de peças de veículos e peças desmontadas para esse fim e o estabelecimento tem prazo de 180 dias para se adequar às normas. Então, vou instaurar um procedimento administrativo de acompanhamento e chamar o Detran para discutir essa fiscalização”, pontuou o promotor.