No dia 21 de dezembro de 2014, uma prova objetiva definiu os 600 novos agentes da Polícia Federal. Esses policiais se unirão em breve a um efetivo de aproximadamente 11 mil policiais federais – segundo o Portal da Transparência, o departamento possui hoje um total 14.297 servidores –, sem saber do ‘grito silencioso’ que os aguarda: o ambiente militarizado que vem, entre outros problemas, causando suicídios.

Dados repassados pela Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef) ao Brasil Post mostram que 40 policiais federais tiraram a própria a vida nos últimos dez anos – o que daria uma média de quatro suicídios ao ano. Entretanto, tal média não é a mais apurada. Conforme publicou a revista IstoÉ em 2013, entre 2003 e agosto daquele ano eram 22 agentes suicidas. De lá para cá, em 25 meses, outros 18 tiraram a própria vida – uma morte do tipo a cada pouco mais de um mês.

“Quando fazemos o concurso para entrar na corporação, a gente já sabe que é uma profissão de risco, de estresse”, disse o presidente da Fenapef, Jones Leal. Neste mês, a entidade promoveu a campanha Setembro Amarelo, criada para prevenção e combate aos suicídios dentro da PF, aproveitando o Dia Internacional de Prevenção e Combate ao Suicídio, celebrado no dia 10 de setembro em todo o mundo.

Então, como explicar tais dados envolvendo suicídios em uma categoria prestigiada, considerada a elite das forças de segurança policial no País? O que leva tantos agentes a tirarem a vida, mesmo sendo protagonistas de 256 operações e a recuperação de mais de R$ 3,3 bilhões apenas em 2014 para os cofres públicos? O que levaria tantos policiais, com vencimentos que podem variar entre R$ 8,7 mil (agentes, escrivãos e papiloscopistas) e R$ 16,8 mil (delegados) a abrirem mão disso e, mais importante, da própria vida?

Embora cada caso seja distinto, em alguns pontos há uma confluência de fatores comuns a todos, pela seguinte ordem: expectativa, realidade, disputas, silêncio, depressão e, por fim, a morte.

1,8 mil policiais para cada médico

Fosse um país, a média anual de quatro suicídios por cada 100 mil habitantes (27,02%) colocaria a PF brasileira como a 7ª nação com mais mortes por suicídio em todo o planeta, segundo comparativo feito pela Fenapef – levando em conta somente termos proporcionais. Para se ter uma noção, no Brasil a média a cada 100 mil é de 5,8%. Em números absolutos no ranking mundial de suicídios, o Brasil é o 111º e o oitavo nas Américas, com 11.821 mortes, de acordo com os dados mais recentes da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Para a delegada federal Tatiane da Costa Almeida, diretora da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), a ocorrência de suicídios entre policiais federais deveria ser menor do que a da população como um todo, sobretudo se for levado em conta que os agentes são pessoas preparadas para o ofício que possuem. Mas não é o que se vê na realidade, e a situação não se resume aos federais, atingido também policiais civis e militares.

“O policial angustiado não faz mal só a ele e à sua família. O policial angustiado é pior para a sociedade, porque vai para a rua para extravasar esse sofrimento”, analisou Almeida no 9º Encontro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, realizado no fim de julho no Rio de Janeiro. A delegada é autora de uma pesquisa que virou referência para entender o alto número de suicídios na PF.

Intitulado Quero morrer do meu próprio veneno, o trabalho foi apresentado em 2012 no Instituto Universitário de Lisboa. Após entrevistar 434 recrutas da Academia Nacional de Polícia, de ambos os sexos, com idades entre 21 e 49 anos, Almeida constatou que, passada a ‘adrenalina inicial da profissão’ ainda na academia, os policiais se deparam com um ambiente recheado de ‘tédio e burocracia’. É o começo de um quadro que pode ter um desfecho trágico.

Em suas conclusões, a delegada federal apontou que os policiais “têm dificuldades com seus problemas pessoais, pois tendem a escamotear as emoções”. Tal constatação leva primeiramente a quadros de estresse, alcoolismo, ansiedade, depressão e síndrome do pânico, de acordo com a Fenapef. “Temos 30% do efetivo afastado por esses problemas (psicológicos e psiquiátricos) em todo o País”, emendou Jones Leal.

Para o psiquiatra forense Guido Palomba, tal situação na PF não chega a ser surpreendente, levando em conta forças de segurança. Segundo ele, a atitude de “atentar contra a própria vida, por conta de um estado mental doentio e que se coloca contra o mais importante instinto, o da autopreservação” ganha mais força entre policiais em razão de “maior potência de colocar em prática um ato” e a diversidade de “fatores desencadeantes”.

“Os fatores desencadeantes entre policiais, não só os federais, são mais fortes, mais representativos, mais constantes. Aquela pessoa possui a potência para realizar o ato, é algo que poderia permanecer em estado larvário e nunca se manifestar, mas ocorre diante da constância de vivências dolorosas”, analisou Palomba.

Conforme informou a entidade dos agentes federais, a direção da PF disponibiliza hoje um psiquiatra e cinco psicólogos para atender toda a corporação – o que daria a responsabilidade de cada profissional de saúde mental cuidar de 1,8 mil policiais. “Eles não colocam médicos para tratar o pessoal doente, então nós contratamos psicólogos e psiquiatras nos Estados para atender aqueles que precisam de ajuda, que às vezes indicam até nas redes sociais que não estão bem”, complementou o presidente da Fenapef.

Disputas internas e assédios

No dia 28 de julho, em Belo Horizonte (MG), pânico e correria tomaram conta do posto da PF no Shopping Anchieta, na região centro-sul da capital mineira. Um disparo foi ouvido e os atendimentos no local foram suspensos naquele dia. Soube-se logo, pelo menos entre os policiais federais, que se tratava de uma tentativa de suicídio. O policial, um homem de 54 anos, foi socorrido e não morreu, mas terá de passar por uma série de cirurgias.

O Sindicato dos Policiais Federais em Minas Gerais (Sinpef-MG) afirmou por meio de nota que a atitude seria uma resposta em protesto “contra a situação interna na PF”. “Só se concebe o ocorrido no contexto de alguém que passe por um profundo sofrimento psíquico. Deve-se considerar também, por outro lado, que há pessoas para quem valores como honra e hombridade têm peso semelhante ao valor da própria vida”, completa a nota.

A relação entre suicídios e a depressão passa pelo que os policiais federais chamam de “assédios constantes”, praticados, segundo eles, por delegados da corporação. Há uma cisão que dura alguns anos entre a Fenapef e a ADPF, as duas principais entidades que representam nacionalmente os policiais federais. No ano passado, o presidente da associação dos delegados, Marcos Leôncio Sousa Ribeiro, chegou a acionar a Fenapef na Justiça.

Do lado dos delegados, existe uma alta crítica às pautas da entidade dos policiais, desde as disputas salariais e por um plano de carreira – a ADPF é a favor, por exemplo, da criação de um cargo policial de nível médio, o que a Fenapef é contra. Não é só. Em entrevista ao site da associação em outubro do ano passado, o delegado aposentado da PF Jorge Pontes, ex-diretor da Interpol no Brasil, sugeriu que agentes ligados à federação eram responsáveis por “vazamentos oficiais” de informações de operações tidas como sigilosas, como a Lava Jato.

Sob condição de manter o anonimato, um delegado da PF confirmou ao Brasil Post que “existe sim uma disputa interna” na corporação, mas ressaltou que “as pessoas sérias não podem falar” e que quem fala é porque “possui interesses políticos”. “Há uma briga interna motivada por vaidade e pouca vontade de trabalhar. O pessoal sério quer melhorar a conjuntura para todos, mas isso enfrenta egos”, revelou o delegado, que teve de trabalhar por alguns anos na região Norte, antes de se transferir para outro Estado, mais perto da família.

Para a Fenapef, as disputas internas na PF vêm tendo grande peso nos casos de depressão e suicídio de policiais federais no País. “A questão de convívio interno é o maior problema hoje. Se estivesse harmônica, o que não está, com certeza teríamos mais efetividade nas operações (…). No passado havia harmonia entre os cargos, mas hoje esse respeito foi perdido”, comentou Leal.

O presidente da federação dos policiais federais chegou a descrever um episódio em que um agente se recusou a entrar em um mesmo elevador no qual esteja um delegado da PF. “É tudo por conta das perseguições e do assédio moral sofrido diariamente, através de instrumentos arcaicos como os processos admistrativos. Colegas vêm tentando sobreviver assim, com muita angústia. Foi o que aconteceu nesse caso de tentativa de suicídio em Belo Horizonte. Um dia depois de ser absolvido em um processo administrativo, no qual ele foi inocentado, ele tentou tirar a própria vida”, afirmou.

Militarismo na PF

Apesar de não serem militarizados, os policiais federais seguem um regime como o das Forças Armadas e dos colegas policiais militares. O regime disciplinar da PF data de 1965, tempos da ditadura militar. Quando ele foi implementado, a corporação tinha 19 anos de fundação com atribuições federais – dois anos depois, o até então Departamento Federal de Segurança Pública adotou o nome de Departamento de Polícia Federal.

O clima “de 15 anos atrás, quando fazíamos um churrasco após cada operação bem sucedida”, conforme relembrou Leal, deu lugar às disputas entre castas internas, em um verdadeiro ‘cabo de guerra’ no qual, as pressões vêm exercendo pressão – e causando quadros de doença psicológica – entre os policiais federais. A falta de profissionais médicos para tratar tantos casos só agrava o cenário.

“Nesse caso de Belo Horizonte o departamento mandou uma equipe com uns três médicos, para conversar e impedir que novos suicídios aconteçam. Mas isso não resolve. Pelo nível de adoecimento que notamos entre os policiais, precisariam ser pelo menos uns 500 médicos”, opinou o presidente da Fenapef. Com tantos afastamentos, se justifica a reclamação dos delegados da PF de terem de trabalhar com equipes cada vez menores.

Para a entidade dos agentes, seria preciso renovar tal regimento interno, sobretudo para evitar o que ele chama de “abusos” nos processos administrativos. “Você consegue dizer o que é ‘trabalhar mal’? Está prevista essa punição no nosso regimento. Aí fica ao gosto de quem analisa. Até ter uma dívida pessoal pode render penalização”, explicou Leal. É um tipo de assédio já descrito como recorrente entre policiais militares.

Em sua pesquisa, a delegada federal Tatiane da Costa Almeida encontrou relação entre processos disciplinares e suicídios na PF. “Ao contrário do que se poderia supor, o policial nesta situação está agindo não somente com a intenção de garantir o sustento da sua família (pensão), que a possível pena de demissão obstaria, mas, também, buscando uma forma de punição, porque ainda que corrupto e desonesto, ele está socializado no papel de policial, sendo influenciado por todas as categorias morais relacionadas”, diz o estudo.

Uma outra semelhança com o militarismo é a imposição de regime que, muitas vezes, colocam o policial federal distante de sua família, por demandas geográficas. Não por acaso, levantamento da Fenapef mostrou que 30% dos agentes trabalhariam sob influência de algum medicamento de uso controlado, ou adquirem outros vícios químicos. E isso atinge até mesmo aqueles já aposentados.

“O policial fica isolado da sociedade. Não sabe ser pai, ser marido. Quando perde o distintivo, fica sem saber o que fazer. Outro ponto é que está na nossa formação suspeitar sempre do outro. O policial acha que todo mundo é ruim e ele é o herói. E não aceita ser visto como fraco”, disse Almeida no encontro do Fórum de Segurança no Rio.

Guido Palomba adicionou que tanta pressão de quem se espera um caráter ‘indestrutivo’ cobra o seu preço, inicialmente com um quadro de depressão, o qual pode evoluir se não tratado. “A grande maioria dos suicídios é por depressão. Primeiro é importante separar depressão de tristeza, algo normal e que todos podemos ter pela perda de um ente querido ou um problema financeiro, por exemplo. Já a depressão não tem motivo aparente, é como se nascesse do nada. É preciso uma providência rápida nesses casos. Unir a potência de se suicidar a um quadro depressivo é algo bastante preocupante e sério”.

Preocupação já chegou ao Congresso…

Diante do quadro nada recente de suicídios entre policiais federais, o tema já chegou ao Congresso Nacional. Em audiência realizada em junho, na Comissão de Direitos Humanos (CDH) da Câmara dos Deputados, a direção da Polícia Federal e o Ministério da Justiça (MJ) foram duramente criticados pelos representantes dos policiais. “Inércia é a palavra de ordem”, disse o presidente do Sindicato dos Policiais Federais do Distrito Federal (Sindipol-DF), Flávio Werneck Menegueli.

O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSC-SP), também policial federal, acusou a PF e o Ministério da Justiça de “prepotência e descaso com a categoria”, sobretudo após representantes da corporação se recusarem a comparecer à audiência. De acordo com dados apresentados por Bolsonaro, 46% dos servidores da PF teriam raiva da instituição. “A chefia evita discutir a situação em público para não incentivar o suicídio”, emendou o presidente do Sindicato dos Policiais Federais do Rio Grande do Sul (Sinpef-RS), Ubiratan Antunes Sanderson.

Presente à audiência, Jones Leal destacou levantamento interno no qual 87% dos policiais federais, em um total de 2 mil entrevistados, está insatisfeito com o trabalho, enquanto 97% se queixaram de falta de perspectivas de crescimento na carreira, e outros 76% apontaram a falta de liderança por parte da chefia da PF. “Nos últimos três anos, tivemos 20 suicídios, nós perdemos mais colegas para o suicídio que para o crime organizado”, complementou.

Ao Brasil Post, o presidente da Fenapef cobrou atitudes por parte do diretor-geral da PF, Leandro Daiello Coimbra, e do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. Na visão dele, ambos possuem poderes para “apaziguar o ambiente interno” entre agentes e delegados, o que por si só já traria benefícios às operações e à saúde dos policiais federais. Outra medida benéfica seria o cumprimento de uma portaria interministerial, formalizada por Cardozo, para contratação de mais médicos para a PF e adoção de políticas de prevenção ao suicídio.

“Temos hoje muitos colegas estudando feito loucos porque não aguentam mais ficar na PF. Todos dizem ‘se ficar aqui, vou me matar’, é um absurdo ter de ouvir isso com frequência, tendo depois de convencê-lo a buscar ajuda e tratamento. Não é algo fácil de conseguir”, concluiu Leal.

Para o presidente da CDH na Câmara, deputado federal Paulo Pimenta (PT-RS), é preciso “buscar soluções para equacionar esse quadro extremamente preocupante”, sob pena de novos casos de agentes suicidas. “O bem-estar dos policiais federais e de outros agentes de segurança pública é do maior interesse para os direitos humanos, pois se a vida se torna insuportável para essas pessoas, elas não terão condições de prestar o serviço que toda a sociedade espera delas”, comentou.

… enquanto ‘silêncio’ impera na direção da PF e no MJ

A reportagem do Brasil Post procurou durante a última semana a direção da Polícia Federal e o Ministério da Justiça, para comentarem os dados de suicídio e as alegações de representantes dos agentes. Via assessoria de imprensa, por telefone, o MJ informou que “a prestação de informações caberia à direção da PF”, não cabendo ao ministério tecer comentários sobre o assunto.

Já a assessoria de imprensa da PF pediu que os questionamentos fossem enviados por e-mail, prometendo dar um retorno. Todavia, isso não ocorreu até a publicação desta matéria.

Para Guido Palomba, um cenário como o da PF, com alto número de suicídios, pede atitude e ação. “É preciso levar a sério as queixas de depressão, sobretudo aquelas sem motivação aparente. É preciso também deixar claro que isso não é fraqueza, mas sim uma situação que necessidade de cuidados. Combate à depressão passa por combate ao estresse, muitas vezes com medidas simples, como se exercitar, dormir bem e evitar excessos”, avaliou.

A análise do psiquiatra forense encontra lastro também na pesquisa da delegada federal Tatiane da Costa Almeida. Para ela, a PF precisa considerar “os anseios dos seus futuros quadros, os quais podem tornar-se decepcionados ao encararem a realidade da burocracia que também faz parte do mundo da polícia”. Além disso, é preciso investir em condições de trabalho e aumentar a vigilância quanto à saúde mental dentro da corporação.

“Destaque-se a necessidade de rediscutir as habilidades desejáveis para os quadros da Polícia Federal. Se os perfis profissiográficos privilegiam dimensões como agressividade e controle emocional numa profissão sujeita a fragilidades como solidão, problemas pessoais e constrição cognitiva, é de se indagar se a polícia é lugar ideal para os que se enquadram nesse perfil”, completa a pesquisa.

Difícil crer que os 600 novos agentes do mais recente concurso da PF – que possuem formação de 20 semanas, com 43 disciplinas e uma carga horário de 800 horas/aula – tenham acesso a todo esse cuidado sugerido por especialistas e por quem vive a realidade atual. Pelo menos enquanto durar o silêncio dos que poderiam modificar o cenário suicida e militarizado na corporação.

Fonte: Brasil Post

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