Do Metrópoles

Vanderlino, Josemilson, Geremias, Givanildo e pelo menos outros quatro hemofílicos moradores do Distrito Federal gritaram por socorro, mas morreram em hospitais da rede pública de saúde por falta de medicamentos (fatores de coagulação), assistência, macas, médicos e uma série de outros itens. Os óbitos são alguns dos casos citados na decisão da 5ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), que determinou a criação de um centro especializado no atendimento de portadores da doença.

Com o veredicto unânime, o governo do Distrito Federal precisa apresentar, em até 120 dias, um levantamento técnico sobre as condições do atendimento aos portadores da doença na rede pública e as necessidades — tanto de mão de obra especializada quanto de insumos — para evitar novos óbitos. Além disso, em um ano, o governo terá de submeter à Justiça um programa para a implementação de pelo menos uma unidade especializada, com equipe multidisciplinar.

A relatoria do processo em segunda instância foi da desembargadora Maria Ivatônia, da 5ª Turma Cível. Ela recomendou a rejeição do pedido do GDF de nulidade e a manutenção, sem qualquer alteração, da sentença da 2ª Vara da Fazenda Pública do Distrito Federal, em fevereiro de 2016.

De acordo com a decisão da 5ª Turma, foi “constatado evidente retrocesso no atendimento dispensado à saúde dos hemofílicos com o registro de oito mortes de pacientes atendidos no sistema de saúde básica”. Na sentença, os magistrados destacaram ainda que “a predominância do interesse nacional referente à saúde é manifesta”.

Por derradeiro, o Distrito Federal e a FHB afirmam que o fracionamento da distribuição dos fatores de coagulação constitui uma medida para sanear serviço prestado. Verdadeiro equívoco”, trecho da decisão da 5ª Turma Cível.

Entenda o caso

A ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) questionava duas medidas administrativas que impactaram diretamente no atendimento aos hemofílicos na rede pública de saúde: a Instrução nº 164/2011, da Fundação Hemocentro de Brasília (FHB), e a Portaria nº 160/2012 da Secretaria de Saúde do Distrito Federal (SES-DF).

Na prática, o atendimento especializado deixou de ser oferecido no Hospital de Apoio de Brasília (HAB) e passou a ser responsabilidade do Hemocentro. Entre os problemas decorrentes da mudança, apontados pelo MPDFT, estão o horário limitado de funcionamento, das 8h às 18h, a falta de equipe especializada e a dificuldade de deslocamento para os pacientes.

Outro ponto é a ausência de remédios específicos nos hospitais da rede pública de saúde, que passaram a atender os pacientes hemofílicos em casos de emergência e fora do período de funcionamento do Hemocentro.

Mãe de dois hemofílicos e presidente da Associação e Casa dos Hemofílicos do Distrito Federal, Antônia Ivonilda espera, finalmente, ter os filhos de 27 e 33 anos recebendo tratamento adequado. “Os dois possuem sequelas em decorrência da doença que poderiam ter sido evitadas. O atendimento nunca funcionou, nem antes nem depois da mudança para o Hemocentro”, afirmou.

Caso Geremias

De acordo com especialistas na área, as enfermidades denominadas como hemofilias A e B caracterizam-se pela dificuldade de coagulação no sangue em razão da falta de proteínas, notadamente as consubstanciadas pelos denominados fatores VIII e IX. Elas são de natureza complexa e os pacientes podem sofrer sangramentos espontâneos. Tal circunstância pode levar ao óbito.

Segundo relatos de familiares, amigos e enfermos, bem como documentos apresentados pela Ajude-C, a falta dos fatores e a precariedade em toda a rede ocasionaram as oito mortes citadas no processo. Em um dos episódios, o “caso Geremias”, é narrada a falha no ciclo adotado.

Ele [o paciente] já havia colaborado com o MPDFT, denunciando que a irresponsável política governamental era inaceitável. Só não podia imaginar ser vítima do sistema”, trecho da ação civil pública movida pelo MP local.

Geremias fazia tratamento no Hospital de Apoio de Brasília (HAB) desde 2001. Antes de morrer, relatou ao MPDFT existir “uma estrutura bem-montada, multidisciplinar e preparada tecnicamente para o trato da doença”. Segundo Geremias, não havia lógica no fim do núcleo montado no Hemocentro. “Foi ruim a opção adotada pelo governo. O fator não recupera sequelas, apenas evita o sangramento. O paciente é que acaba sofrendo, sendo lesado”, afirmou.

Após ser atendido pela rede de saúde convencional ele faleceu. Geremias deu entrada no Hospital Regional do Gama (HRG), mas foi enviado para casa sob a justificativa médica de que seu quadro clínico era de estresse – mesmo com o médico sendo alertado do estado hemofílico do paciente. Depois disso, o homem veio a óbito.

Fator para toda rede

A ação inicial ajuizada pelo MPDFT pediu a nulidade da Instrução FHB nº 164/2011 e da Portaria da Secretaria de Saúde do DF nº 160/2012, também por elas concentrarem o fornecimento do fator de coagulação à FHB. Assim, os hospitais não mantêm estoque. Como a Fundação Hemocentro funciona das 7h às 18h, segundo o Ministério Público, há demora no transporte e no fornecimento dos fatores para atendimento.

O GDF e a FHB alegaram no processo não caber ao Poder Judiciário estabelecer políticas públicas de saúde. Argumentaram ainda que a atual política de assistência aos portadores de coagulopatias é suficiente para atendimento da demanda. Além disso, acrescentaram, instalar um novo centro é uma medida desproporcional e, como tal, não merece prosperar.

“A atual política pública para a assistência ao hemofílico no DF (com estruturação de laboratório de última geração, acompanhamento domiciliar dos enfermos mais graves e responsável distribuição da quantidade de fatores de coagulação existentes) tem sido considerada como excelente pela maioria dos pacientes”, diz a defesa e a argumentação dos réus.

Ainda segundo o GDF e o Hemocentro, no quadro anterior havia um total descontrole da situação, instabilidade e infraestrutura precária. Além disso, esta reportagem foi informada de que a “disponibilização de estoque emergencial na rede não pode ser realizada de forma intempestiva; é preciso realizar estudo prévio”.

Emergência

Integrante da Ajude-C, a médica Jussara Oliveira Santa Cruz foi ouvida no processo. Ela afirmou que a necessidade de realização do procedimento emergencial é fator determinante para se salvar vidas. “A descentralização do tratamento das coagulopatias perdeu-se justamente por causa da urgência dispensada”, disse.

Ela cita a necessidade de atendimento e do uso da medicação em até duas horas. Por isso, pede um centro de acolhimento. “Um paciente que aguardou por 18 horas no Instituto Hospital de Base (IHB) pela primeira aplicação da medicação morreu enquanto esperava”, citou.

A 5ª Turma entendeu pela necessidade de mudanças no sistema. A decisão foi proferida em segunda instância.

Conforme informou por meio de nota, a Fundação Hemocentro de Brasília não havia sido notificada sobre a decisão até a última atualização desta matéria. “Assim, não pode, neste momento, emitir qualquer pronunciamento”, disse a assessoria de imprensa.

Atualmente, a FHB possui 335 servidores em atividade e funciona de segunda a sábado, das 7h às 18h. Segundo a equipe esclareceu, para o atendimento ambulatorial a pacientes portadores de hemofilia, a fundação funciona de segunda a sexta, no mesmo horário, e conta com profissionais nas áreas de medicina, odontologia, enfermagem, psicologia, fisioterapia, farmácia e serviço social.

 

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