Presa injustamente em 2004, Gisele viu desfecho completo do caso apenas 14 anos depois | Foto: Comunicação Sinpol-DF

O programa do dia era ir ao clube. Mas Gisele não chegou à casa da mãe, onde estava combinado de toda a família se encontrar. O que chegou foi a informação de que ela tinha sido presa na noite anterior. E o pedestal de exemplo e orgulho em que ela era colocada por todos que a conheciam veio abaixo – com a mesma velocidade em que a notícia repercutia por todo o Distrito Federal.

Em pouco tempo, Brasília inteira era informada pela imprensa que a agente de polícia Cleide Gisele Santos estaria circulando drogada em Ceilândia e havia sido presa em flagrante por assalto a mão armada. Mas foi isso mesmo que aconteceu? Só ela sabia.

Gisele e o companheiro saíram da casa do pai dela, no centro da Ceilândia, e, pouco depois, um carro – ao passar pelo quebra-molas na diagonal – acabou batendo no carro da policial. O veículo evadiu e ela, agindo pelo instinto policial, disse para o companheiro segui-lo.

Mais a frente, esse carro bateu no meio-fio e os cinco ocupantes saíram correndo, fugindo em direção ao mato. Inevitavelmente, ela imaginou que havia ali alguma situação criminosa; alguém com mandado pendente ou portando drogas, por exemplo. Mas logo chega um novo veículo, quatro homens descem e partem para cima do casal tentando intimidá-los. Ela não hesitou, apresentou-se como policial civil, sacou a arma e ordenou que todos se posicionassem para revista.

Enquanto o companheiro verificava a documentação dos quatro, chega um terceiro carro, que fica parado no fim da rua com os faróis acesos em direção a eles. Para ela, a impressão é que se tratava de integrantes do primeiro grupo, acompanhados de mais pessoas, na intenção de intimidá-los. A tensão foi às alturas quando esse veículo partiu em alta velocidade na direção do casal. Ela, então, deu um tiro para cima e um para baixo.

Houve um momento de pânico e, em questão de segundos, o companheiro de Gisele se joga no chão, o terceiro carro parte do local e os integrantes do segundo entram às pressas no veículo, também fugindo. Ficam lá a agente de polícia e o companheiro com o carro deles batido e o outro abandonado (em que estavam as cinco pessoas que fugiram a pé no início da situação).

O casal esperou, no local, a chegada da Polícia Militar, momento em que seguiram para a 15ª DP. “Ao ir para a delegacia, eu fui convicta de que estava indo para a minha casa apenas resolver uma questão inesperada”, relata Gisele. “Mas eu fui humilhada, destratada e o sentimento principal era de confusão. Eu não entendia o que estava acontecendo”, lembra a policial civil.

ABUSO DE AUTORIDADE

Quando Gisele chegou à delegacia, portanto, já existia uma versão dos fatos que a colocava como a criminosa da situação. Mais cedo, integrantes do primeiro grupo haviam relatado a policiais militares sobre “uma possível tentativa de assalto”. Para piorar, no momento dos disparos, o companheiro da policial arremessou a carteira de um dos integrantes que se evadiu do local no assoalho do veículo em que ambos estavam, sem que Gisele tomasse conhecimento.

Relembrando os fatos, Gisele reconhece que “a situação estava envolta por circunstâncias que colocam tudo em dúvida”. Para ela, entretanto, o delegado não priorizou a elucidação dos fatos. “Ele enxergou ali uma oportunidade de se destacar com a prisão de uma policial por pura vaidade e despreparo”, afirma.

“O delegado chegou a me chamar de vagabunda e achou que eu iria engolir a humilhação calada, mas eu não fiquei. Eu não aceitei de forma nenhuma o lugar que ele estava querendo me colocar. E revidei na mesma altura”, relata a agente. “Ter ouvido na mesma moeda de uma mulher, e na frente dos subordinados hierarquicamente, foi inimaginável, e ele ficou furioso. A partir daí, a coisa ficou pessoal e ele tentou me prejudicar de todas as formas”, analisa.

A policial civil esperava que a primeira atitude do delegado teria sido chamá-la em particular para que contasse sua versão dos fatos. “Mas a vaidade falou mais alto, tanto que logo a imprensa foi chamada para divulgar a prisão”, diz.

Gisele entende que a ocorrência, na pior das hipóteses, poderia ter sido classificada como exercício arbitrário, como se o companheiro dela estivesse tentando forçar o outro condutor a pagar pelo dano causado ao veículo, mas “jamais um assalto”. Contudo, ainda houve inúmeras outras acusações, inclusive de porte ilegal de arma – mesmo que ela estivesse com o armamento acautelado da Polícia Civil do DF (PCDF) e com toda a documentação em mãos. “Até para validar a prisão, ele gerou a suspeita de que eu estava drogada”.

CASTIGO

Enquanto os parentes se organizavam para o dia no clube, Gisele continuava sentada num banco da 15ª DP, onde passou a noite algemada ao lado de três criminosos. Da delegacia em Ceilândia, ela foi transferida para a Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam), onde passou um mês presa. “A cela era um cubículo fétido dentro da sala de trabalho. Então, todos os dias, os colegas iam trabalhar e me viam ali, como um animal enjaulado”, relembra a policial.

Depois veio a transferência para o Presídio Feminino. Acima de sua cela, a palavra “Castigo” indicava, mais uma vez, o despreparo do Estado para lidar com uma policial presa. O espaço, antes utilizado para punir as detentas, foi improvisado para receber a agente. Era uma cela de isolamento, com a porta sólida e apenas uma minúscula janela ao centro. Na cela ao lado ficavam seis mulheres, de traficante a homicida. “Toda noite, eu arrastava a cama e a colocava contra a porta para me proteger. O risco e o medo eram constantes. Só passando na pele para saber o que é viver isso”, acrescenta a policial.

Por quase 400 dias essa foi a vida de Gisele – que ficou um ano e um mês presa. Ainda que bem-vinda, a liberdade também não foi fácil. Imediatamente, ela se apresentou para trabalhar, mas entre sussurros e questionamentos diretos, ela se sentia julgada o tempo inteiro pelos colegas. Chegou a imprimir e plastificar uma cópia reduzida do laudo toxicológico mostrando que ela não estava drogada, como foi acusada na ocasião. Ela andava com a “prova” na carteira, pronta para se defender em situações de humilhação.

Não só a imputação de estar drogada, como o porte ilegal de arma e todas as demais acusações contra Cleide Gisele foram caindo. No fim, quando foi para julgamento em última instância, restou apenas a de roubo – mas, desclassificada para furto atribuído ao companheiro dela.

Em todo esse caminho, a agente de polícia contou com a assistência jurídica do Sinpol-DF. “O cuidado do advogado foi o primeiro momento em que, depois da prisão, eu me senti pertencente à instituição; me senti acolhida”, revela Gisele. “Minha família ficou tão constrangida e humilhada que, trabalhando no desespero, estava disposta a se desfazer de tudo que tínhamos para arcar com a defesa. Mas eu confiei no sindicato e isso se mostrou a melhor escolha”, garante.

“Eu jamais teria as condições financeiras de bancar advogados do padrão dos que me foram ofertados pelo Sinpol”, admite a agente, que, criminalmente, foi defendida pelo advogado Ronaldo Cavalcanti. “Além disso, ter um corpo de advogados do sindicato tem uma importância ímpar porque eles têm a vivência com a realidade policial, têm o preparo para enxergar que a posição e as atitudes dos policiais diante de determinadas situações são completamente diferentes de qualquer outra pessoa”, complementa.

Essa convicção foi, inclusive, referenciada pela Justiça. Ao ler a história, o desembargador Romão Cícero, relator do processo, reconheceu a validade dos argumentos trazidos pela defesa e afirmou que só enxergava ali a atitude de um policial. “Isso aqui dá até nome de filme: Eu contra todos na Ceilândia”, ressaltou o jurista. E Gisele foi absolvida. “Eu tinha sido reduzida a nada e, naquele momento, foi como se alguém estivesse dizendo ‘toma aqui de volta a sua dignidade’”.

REVÉS

Da situação criminal, a policial civil foi inocentada. Mas, enquanto servidora pública, ainda respondia a um processo de improbidade administrativa. Ela chegou a ser demitida e ficar mais quatro meses afastada das atividades. Nesse processo, Gisele era acompanhada por Pierre Tramontini, do Tramontini Advocacia – um dos escritórios que atualmente prestam assessoria jurídica ao Sinpol-DF

A demissão era final, não havia novas instâncias recursais. Mas Gisele não aceitava que pudesse perder o cargo por algo que ela não fez e que a própria Justiça assim reconheceu. Os advogados se debruçaram, então, sobre o processo na busca por alternativas e fizeram novas alegações à corte cível.

Além da argumentação técnico-jurídica, os desembargadores receberam também um dossiê mostrando quem era Gisele enquanto policial e como pessoa: uma servidora com histórico de elogios no Diário Oficial, chefias e substituições de chefia. Uma mãe divorciada, que criou a filha sem qualquer suporte do ex-marido. Uma filha exemplar, que cuidou de um pai alcoolista durante os três anos em que ele passou acamado, necessitando de cuidados em homecare.

O encerramento dessa história veio só no fim de 2020, às vésperas da aposentadoria de Gisele, que estava em xeque, e 16 anos depois da prisão, que ocorreu em agosto de 2004. No entanto, a justiça, mais uma vez, foi feita. Com 14 votos a favor da policial civil e apenas um contrário, o resultado do julgamento foi tão positivo quanto possível, ainda que, pelo ineditismo, também tenha sido inesperado.

Em janeiro deste ano, Gisele se aposentou e agora o sentimento é de gratidão. “Essa situação afetou a minha vida e a da minha família de uma forma extremamente avassaladora. Diversas pessoas próximas passaram por problemas de ordem física e mental por conta disso tudo. Eu fui ao nível máximo de humilhação e constrangimento, mas consegui sair do outro lado. Hoje, eu posso dizer: o Jurídico do Sinpol resgatou a minha dignidade”, reconhece.

“Minha gratidão eterna à minha família, pelo valor e valores que sustentamos; à Pierre Tramontini, pela competência e parceria, e aos colegas que se mantiveram ao meu lado, oferecendo apoio e ajudando a elucidar os fatos”, completa a policial civil.

ASSISTÊNCIA DO SINDICATO

“O que Gisele passou é algo que eu não desejo para ninguém, mas é algo que todos nós policiais estamos sujeitos a enfrentar em razão do cargo que exercemos”, pondera o diretor Jurídico do Sinpol-DF, André Henrique. “É claro que nós torcemos para que nada aconteça, mas estamos sempre expostos, tanto na vida privada, quanto na vida profissional. E, se algo desse tipo ocorrer, é imprescindível ter a segurança, ter a certeza que o sindicato vai estar ali para me auxiliar”, acrescenta.

Depois do que viveu, Gisele é da mesma opinião. “Antigamente, a primeira coisa que a gente fazia quando entrava na Polícia era se filiar ao sindicato. Era como um ritual de validação, mas ainda assim, até eu precisar, não dava o devido valor”, confessa a agente de polícia veterana. “Se não tivesse recebido esse suporte, talvez hoje eu não tivesse uma casa, um carro, ou minha família estaria afogada em empréstimos e dívidas. O estrago teria sido muito maior”.

“Talvez nem tivesse obtido os resultados positivos que tive. Talvez todo aquele inferno ainda fosse minha realidade, não só um trauma do que ficou para trás”, acrescenta a policial. “Por isso, hoje eu reconheço que o sindicato é a primeira e mais importante defesa do trabalhador. Isso não só sou eu que estou dizendo. É a história que nos mostra”, decreta.

NOVA REALIDADE

Com a aposentadoria, Gisele passou a se dedicar, profissionalmente à fotografia. Também faz um trabalho social com mulheres vítimas de violência e crianças com Síndrome de Down.

Seu pai, infelizmente, já faleceu, mas antes teve a felicidade de ver a integridade da filha restaurada publicamente – como, desde o início, a família acreditou.

As feridas ficaram, mas hoje ela já consegue contar tudo que passou sem cair no choro, como acontecia há alguns anos. O dia no clube, que foi interrompido lá atrás, ela já pode curtir com a mãe, a filha e agora com o neto – de cabeça erguida.

 

 

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