Medo, insegurança e esvaziamento do espaço público são os grandes desafios para se pensar criticamente um país mais justo e com menos violência

*Conselheiro do FBSP e professor da PUCRS
*Vice-Presidente do FBSP e professor da FGV

No próximo dia 25 de fevereiro, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) completa 10 anos de existência. Criado por pesquisadores, policiais e gestores públicos, o Fórum surgiu com o propósito de reunir e colocar em diálogo atores chave para a consolidação democrática. Por isso mesmo, a proposta da entidade sempre foi a de garantir a pluralidade de ideias e de perspectivas em torno dos desafios para a redução da criminalidade e o aperfeiçoamento das instituições responsáveis pela segurança pública, a partir de uma carta de princípios que reafirma a democracia como compromisso maior em torno do qual as propostas e iniciativas da entidade devem estar articuladas.

A transparência na produção e análise de dados sobre a criminalidade, a letalidade e a vitimização policial, a elucidação dos efeitos do encarceramento, e a ampliação do controle público sobre a atividade policial, identificando e disseminando boas práticas, têm sido os eixos estratégicos em torno dos quais tem se articulado as iniciativas da entidade, com destaque para a edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública e para os Encontros Anuais, que já reuniram mais de oito mil profissionais, buscando aproximar diferentes segmentos e construir pontes de diálogo. Nestes 10 anos, é possível afirmar que o FBSP tem dado uma contribuição efetiva para uma nova agenda para o setor.

Porém, é inegável que ainda temos muito a fazer para termos políticas efetivas e eficazes na garantia do direito à segurança. A falta de continuidade dos programas e políticas, a cultura policial ainda refratária aos mecanismos de controle e à transparência, a estrutura defasada, que divide o ciclo de policiamento em duas metades, cada uma a cargo de uma polícia, cujas carreiras são também divididas, e a não constituição de um sistema nacional de segurança pública que integre as iniciativas da União, estados e municípios, são alguns dos entraves que, por não serem enfrentados, resultam no morticínio de quase 60 mil cidadãos brasileiros assassinados ao ano;  no desprestígio e desvalorização das polícias; e na sobrecarga do sistema carcerário, em um contexto onde os crimes mais graves contra a vida permanecem impunes e as prioridades são definidas sem o necessário debate público.

Motivos para o atraso no setor persistem, e são vários. Entre os quais, vale referir, no âmbito discursivo, a permanência de uma dicotomia que coloca em confronto o “discurso simplório” e o “discurso crítico”, e que pouco contribui para as necessárias mudanças. O “discurso simplório”, ou de senso comum, é apresentado cotidianamente por diversos atores do campo político e da segurança, que diante do fracasso dos sucessivos governos em reduzir a violência culpam uma genérica flacidez legislativa, fruto da força dos defensores dos direitos humanos no pós-ditadura, que enfraqueceram a ação do Estado e inviabilizaram o combate ao crime, por imporem às polícias uma atuação em padrões constitucionais e ao sistema penal a garantia do direito de defesa e a proteção da dignidade humana na execução da pena. Pouco interessa aos formuladores deste discurso (por isso mesmo simplório) que a realidade o desminta cotidianamente, uma vez que os padrões de funcionamento democrático do sistema ainda não foram assegurados, e o desrespeito aos direitos ainda é a regra para amplos setores da população.

De outro lado, o “discurso crítico”, com presença marcante em determinados grupos de diletantismo acadêmico, acusa o Estado de instituir uma “sociedade do controle”, inibindo os direitos individuais e impondo regras e procedimentos incompatíveis com a liberdade e a privacidade, e atacam as polícias como as exclusivas responsáveis pela exacerbação da violência. As altíssimas taxas de violência seriam apenas o subproduto de uma sociedade desigual e excludente, e não haveria motivos para buscar alterar os padrões de atuação das instituições estatais responsáveis pelo controle do crime, predestinadas a agirem indefinidamente como puramente repressivas e violentas contra os setores sociais discriminados e vulneráveis.

Na medida em que a criminalidade avança e a opinião pública é cada vez mais refratária a qualquer medida que não signifique mais prisões e penas mais severas, permanecemos no círculo vicioso de uma democracia de fachada, em que grande parte da população é tratada como cidadãos de segunda classe pelo Estado, porque seu perfil é identificado com o dos criminosos. O esforço do FBSP tem sido por explicitar tais movimentos e contribuir na construção de uma narrativa alternativa à barbárie do nosso cotidiano.

O medo e a insegurança configuram a experiência social contemporânea, esvaziando o espaço público, reduzindo a confiança na democracia e nas instituições e arregimentando novos adeptos às facções criminais (dentro e fora da estrutura estatal) e à caixa de pandora dos discursos de lei e ordem. Todas estas questões são desafios mais do que suficientes para mais uma década de atuação do FBSP e para a coalizão de todos os que acreditam e trabalham por um país mais justo e com mais vida e menos violência.

 

Artigo disponível no site ZH Notícias

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