George Felipe de Lima Dantas *
Luciano Porciuncula Garrido *
“Em seguida imolará o novilho diante do SENHOR, e os filhos de Arão, os sacerdotes, oferecerão o sangue. Eles o derramarão ao redor, sobre o altar que se encontra na entrada da Tenda do Encontro”. (Levítico 1:5)
No final de 2014, circularam diversas notícias na mídia brasileira acerca da letalidade das ações policiais havidas no país. De acordo com tais notícias, lastreadas em contagens estatísticas, 2013 acumularia mais de duas mil mortes resultantes de ações policiais, ao que equivaleria uma média de seis mortes diárias. A conclusão a que se chega, de acordo com algumas manchetes, é que “a polícia brasileira mata muito” ou “mata mais que…”.
O que essa totalização de números permite aduzir, mais além de que “a polícia brasileira mata muito”? Várias outras conclusões, mais holísticas e contextuais, depuradas de uma instintiva perplexidade e indignação que nos ponha de imediato à cata de um bode expiatório mais à mão – a própria polícia. É necessário prudência, portanto, temperada com um pouco mais de reflexão (e talvez imparcialidade), para não extrair dos dados brutos conclusões recheadas de preconceitos ideológicos, lugares-comuns sobre uma “polícia malvada” – essa frequentadora assídua da mídia sensacionalista e da violência espetacularizada.
Dados estatísticos, conforme vai referido na literatura especializada (inclusive por Evan Esar), possibilitam o estabelecimento de diferentes recortes e leituras (inclusive da parte dos experts no assunto). Em econometria, equivalentemente, existiria até mesmo o recurso a uma “contabilidade criativa” permitindo “engendrar conclusões” partindo de categorias de dados que seriam de igual maneira “recriadas”. Ora, é por demais sabido que existe considerável variabilidade de métodos e técnicas de pesquisa, incluindo o respectivo processamento de dados, produzindo grande diversidade na interpretação de coisas como escalas internacionais, regionais e locais de índices, aí incluída a “letalidade por homicídios produzidos em situações de confronto direto com a polícia” — os mais que discutidos “autos de resistência”.
A par dos números apresentados na mídia, a primeira e mais imediata reação, no arco-reflexo do senso comum, é diagnosticar um descontrole estatal no uso legítimo da força, com a violência policial (ou “demasiada violência”) incidindo sobre a nação como um flagelo. Os dados frios das estatísticas, no entanto, parecem esconder a dura realidade da atuação policial em meio a uma sociedade na qual são aniquilados mais de 50 mil cidadãos ao ano (nos chamados “homicídios dolosos”), sem que a história do país registre qualquer conflito generalizado de caráter ideológico, religioso, racial ou étnico.
Num país cujo índice de homicídios dolosos (25,2 mortes por 100 mil habitantes) ultrapassa em mais do dobro o limite a partir do qual a Organização Mundial de Saúde entendeu por bem caracterizar como estado de ‘violência endêmica’ (dez mortes por 100 mil habitantes), pergunta-se: nessa conjuntura do Brasil de 2013, seria humanamente possível uma redução significativa da letalidade policial? Talvez o fosse, aumentando a sua própria mortalidade (de 490 policiais mortos em 2013, segundo a mídia), quiçá privando o policial do direito à legítima defesa de si e de terceiros, na inglória tarefa de promover a observância da lei e a manutenção da ordem pública. E parece temerário fazer comparações da letalidade policial no Brasil com a de outros países, sem levar em consideração outras variáveis culturais, sociais e econômicas (o ‘coeteris paribus’).
É curioso que, apresentados os dados estatísticos, boa parte da mídia tenha replicado a questão do custo financeiro da violência (algo em torno de R$ 258 bilhões, ou seja, quase 6% do PIB) como estratégia para chamar a atenção das autoridades públicas para o assunto. Como se os gastos com ‘remédio’ merecessem alguma preocupação em face de uma ‘doença fatal’. Enquanto vidas são ceifadas em escala verdadeiramente industrial, instilando o “pânico moral” (salve-se quem puder…) e “medo do crime” (a exemplo do “toque de recolher” determinado por organizações criminosas em várias comunidades), causando também dramas individuais, familiares e prejuízos emocionais irreparáveis, a preocupação de alguns parece recair sobre aspectos econômicos do problema, sugerindo a velha tese de que o bolso é o órgão mais sensível do corpo humano – pelo menos, enquanto há vida.
Vale mencionar a estimativa de estupros ocorridos no mesmo período, que, considerando não apenas os casos notificados mas também as cifras ocultas (ou “cifras negras”), pode chegar a cerca do triplo do número de homicídios dolosos (algo ao redor de 150 mil ocorrências). Não diferente, o elevado quantitativo de mortes no trânsito (mais de 40 mil ocorrência em 2013) é outra realidade não computada e que, associado aos demais números, sugere um quadro de violência estrutural e sistêmica no país. Em meio a essa verdadeira ‘guerra com mortes’ estão as corporações policiais do país, matando e morrendo, sem deixar, porém, de cumprir sua missão institucional. Não parece razoável tomar os integrantes das polícias como ‘pontos fora da curva’ na moralidade média do meio social brasileiro, ombreando-os às práticas criminosas que se afiguram em variadas frentes e com diferentes origens.
Tanto a violência quanto a polícia, supostamente a ela associada, pareceriam sugerir, contemporaneamente, ideias e sentimentos aversivos da parte do público. Nada mais natural, portanto, que venha se tornando “politicamente correto” esposar ideias e insuflar sentimento de revolta contra as instituições policiais, seus prepostos, instrumentos, métodos, técnicas e procedimentos operacionais de intervenção. Ainda assim, a fronteira do ‘politicamente correto’ é uma linha que se move (Clive Anderson).
Sim, tais linhas e limites de aceitação popular, inclusive acerca da própria polícia, de fato se movem, conjuntamente, diante do patamar geral de violência, crime e desordem que afeta a todos brasileiros indistintamente. E isso inclui, paradigmaticamente, os respectivos índices de mortes violentas, quer sejam elas por homicídios dolosos, ou culposos, da não menos cruenta letalidade do trânsito. Muito provavelmente, ao todo, perfazendo mais de 100 mil mortes anuais…
“Que polícia é essa”? Ou “Que país é esse”?
* George Felipe de Lima Dantas é Consultor de Segurança Pública, Tenente Coronel reformado da PMDF, Doutor pela “The George Washington University” Washington DC, EUA.
* Luciano Porciuncula Garrido é Policial Civil, Psicólogo, Pós-graduado em Segurança Pública e diretor do Sinpol/DF.